Explico por vontade própria (com um misto de “antes que venham me perguntar”) um questionamento que agora parece se reproduzir quando se fala sobre nazismo e holocausto (se sabe qual é “a pergunta”, não preciso dizer, se não sabe ainda é porque não precisa saber).
Duas coisas me marcaram bastante, logo no início da minha adolescência: as séries Raízes e Holocausto exibidas na TV. Podia dourar pílula, mas não vou fazer disso um exercício literário, e só pra terminar essa introdução, tive essa criança que recebeu um impacto que descortinou repentinamente essas duas realidades. Continua marcante, porém hoje, mais conhecedor de outras tragédias humanas.
Hoje falo sobre um filme e começo pela série de coincidências. A estreia de “Zona de Interesse” nos cinemas brasileiros, a fala desconcertante de Lula sobre o holocausto e o destaque do período nazista na vida de Christian Dior e Coco Chanel. Entrelaçai-vos.
1979 foi o ano que a história do Holocausto impactou minha vida. Poster DVD. Divulgação
Sobre “Zona de Interesse” são muitas informações exponenciais. O filme baseia-se em um livro de um autor talentoso (Martin Amis) de outros ótimos livros e (muito) amigo de outro autor que também deveríamos conhecer (e ler) mais – Christopher Hitchens; não é filme de comediante alegorizando a tragédia (ainda que “Zona” também concorra ao Oscar como concorreu a comédia); não é sobre a disputa entre atiradores de elite da URSS e da Alemanha; tampouco, invasão de esquadrão especial em missão de resgate; ou fuga heroica de grupos ou indivíduos oprimidos em guetos e campos de extermínio comuns em filmes na década de 1960 e 70.
Além de tudo que não se mostra, “Zona” é sobre a ambiciosa tranquilidade impessoal (e burocrata) diante de atrocidades que acontecem logo ali a dois passos do próprio paraíso. Filme de pequenos detalhes que evidenciam realidades devastadoras. E basta. O filme é sobre o holocausto.
Reafirmo o óbvio. O filme necessita de algum (bom) nível de interpretação. Sua estética e narrativa solicita isso do espectador. E isso nada tem a ver com arrogância, preciosismo ou tagarelice intelectual do tipo “Esse filme não é pra você!”.
A zona de interesse: O paraíso no inferno. Poster: Divulgação
Simplesmente é assim, pois estamos diante de uma espécie de (me permitam…) sutileza da barbaridade na abordagem incomum de um cineasta. (Exemplo de filme sobre o mesmo tema, entretanto, artisticamente mais direto e explícito: Jojo Rabbit. Só para balizar.)
Penso que dizer muito ou entregar demais sobre o filme fará você perder a oportunidade de praticar autoavaliação para saber se realmente está preparado(a) para discussões mais sérias sobre o que representa esse momento histórico.
Vamos então a um pequeno salto de conteúdo, mas sem perder de vista o eixo temático.
Jojo Rabbit: Uma criança que vai descobrir de verdade quem é seu amigo imaginário. Imagem: Divulgação
Não há como tergiversar sobre o fato de que o atual governo de Israel está cometendo um genocídio contra o povo palestino, porém, a declaração de Lula sobre o holocausto, do ponto de vista conceitual, foi inadequada. Ele afirmou, já de forma desastrosa, que o que acontece na Faixa de Gaza “não existiu em nenhum outro momento histórico”. Lamentável de tão impreciso.
Pra demonstrar o atropelo histórico do presidente, basta lembrar das tragédias de Grozny (Chechênia) em 2000 e de Alepo (Síria) em 2015, sem ir adiante com outros exemplos.
Existem procedimentos (por vezes arriscados) que são comuns às análises: a comparação e a associação. Os dois são importantes e válidos, afinal, dessa forma podemos construir um experimento científico de análise.
Mas creio que utilizá-los do ponto de vista analítico, utilizando os diferentes níveis de violência humana espalhados pela história, requer antes de tudo, um profundo conhecimento do assunto, ou no mínimo, uma assessoria respaldada que possa entregar uma abordagem responsável e em harmonia com fatos. Não houve nada disso no que se relaciona ao discurso de Lula sobre o holocausto.
As informações históricas estão disponíveis e basta o esforço e interesse de conhecer. Cartaz: Divulgação
Desde que procuro conhecer e compreender a história dos nossos continentes e seus conflitos, logo constatei o perigo da análise ao utilizar comparativos com que chamo de “contabilidade do mal” – “Esse ou aquele momento da nossa histórica violência foi, ou é mais grave”, indicando maior ou menor morticínio.
Vidas inocente são inestimáveis e não são apenas números ou quantidades que avaliarão a gravidade dos fatos. O fato já é “Per se”.
Sei que existem dilemas inescapáveis que traduzimos como “antes ele do que eu” e que a delicada hermenêutica do direito sabe traduzir para regras sociais. Mas essa corrida macabra na contagem de cadáveres para potencializar, em termos de comparação, a gravidade da brutalidade não é o melhor professor.
É importante também observar que a fala de Lula sobre o conflito em Gaza foi ignorante e imprecisa, mas de forma alguma foi antissemita e quem fala ou propaga isso, só o faz também por pura ignorância ou estimulado por ideologia, e mais grave, usando esse perigoso conceito de “contabilidade do mal”.
Se de um lado temos a total falta de habilidade histórica de Lula, do outro temos a burrice, ou no mínimo, falta de lucidez de uma turba fanatizada.
Banalidade? Documentário demonstra que Eichmann era mais que um “funcionário obediente”. Cartaz: Divulgação
Também não acho, como alguns alegam, que a retórica de Lula foi estratégica ou hiperbólica, senão o erro histórico cometido não estaria presente no discurso. Sua possível “posição estratégica” foi desgastada pelo erro de não entender a ignorância e fanatismo espalhados pela extrema direita brasileira sobre assunto tão importante.
Nem todos necessitam ter precisão histórica ou dominar todos os fatos que envolvem a Segunda Guerra Mundial – apesar de ser aconselhável algum nível básico de conhecimento – mas destaco que, possivelmente, a história do nazismo tenha o maior número de pesquisas e trabalhos escritos e disponíveis para a população geral. Se quer falar sobre o tema, cuida, pois passa a ser uma obrigação.
Mas também sei que é exatamente essa extensa fonte de conhecimento sobre a matéria que dificulta conhecer suas diversas abordagens e fatos, lhe caracterizando com o que chamo de “aspecto histórico infindável”. Mais um salto e demonstro:
Existe uma brasileira chamada Valéria Goettert (provavelmente você não a conheça ou por ignorância ou porque não lhe interessa) que vem obtendo muito destaque nas passarelas mundiais da moda (ponto 1). Ela desfilou recentemente para a grife Christian Dior (ponto 2). Em uma das suas entrevistas ela relatou que estudou muito sobre a história das grifes (ponto 3).
Goettert: Todo o talento da modelo que desfila para grife Dior. Imagem: Internet
Pergunto: Será que estudando, ela descobriu que Dior desenhou vestidos para esposas e namoradas de oficiais nazista na França ocupada?
Proponho o exame. Deveríamos reprová-la por usar roupas da grife de um estilista que teve relações direta com o nazismo? Você ao menos sabia que existia essa relação? E se sabe, conhece detalhes dessa relação?
Numa outra rápida pesquisa, busquei saber quantas pessoas evitam usar (ou mesmo, boicotam) as cobiçadas fragrâncias Chanel ou peças do seu vestuário e acessórios como protesto sobre a relação (próxima, íntima e profunda) que a estilista teve com o nazismo, sendo inclusive acusada por pessoas próximas a ela, de práticas antissemitas.
Não é uma discussão fácil, mas para algumas desse resposta, veja The New Look, em cartaz na Apple TV+ e descubra como além dos fatos históricos, existem as nuances.
Sei que muitos não estão dispostos nem a conhecer os fatos e muitos menos suas camadas, mas sempre querem falar ou dar opiniões. Tsc tsc tsc.
Dior e Chanel: A moda à disposição do nazismo, mas com suas diferentes camadas. Cartaz: Divulgação
Minha sugestão é não usar a pressa ou muito menos a fragilidade do conhecimento para financiar análises sobre um tema tão importante.
Por essas e outras, infelizmente, não consigo imaginar Lula assistindo um filme sobre o nazismo como “Zona de Interesse”. Muitas outras pessoas também, principalmente, as que estão a bradar sobre o assunto apoiados em ideologia.
Portanto, alerto que se a experiência de ver o filme for embaraçada, você provavelmente não tem condições de propor discussões mais delicadas e sensíveis como as que sacudiram as recentes opiniões (muitas, bastante ignorantes) sobre o holocausto.
É necessário compreensão, mas só se alcança esse estágio conhecendo a matéria. E se você não domina seus aspectos mais básicos – e posso afirmar que, mesmo eles, são infindáveis – certamente você precisa mais do que ideologia para assegurar sua visão de mundo.
Porém, uma lembrança relacionada a discursos que ainda em mim reside forte, é a do pronunciamento de um ex-secretário nacional de cultura chamado Roberto Alvin, semelhante em forma e conteúdo com o de Joseph Goebbels, ministro da Propaganda da Alemanha Nazista de Hitler e um dos idealizadores do nazismo.
O conhecimento e a memória sempre deve ser a arma que nos resta. Montagem: FSP
O conhecimento histórico e a lembrança podem ser as melhores armas que temos nessa batalha. E toda instrução não será suficiente. Para melhor colocar isso, peço ajuda de Voltaire e de um recente artigo que li. O autor escreveu assim, citando o filósofo francês:
“A ideia de que, diante de “todo mal que há na terra”, o mais prudente era reconhecer que sabíamos pouco”.
Sabiam que Voltaire demonstrava antissemitismo?
Percebem? (HD)
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