Concordo que o excesso de reimaginações, remodelações ou reapresentações na cultura pop, podem sim, serem exagerados, desproporcionais e com a pesada mão da descriatividade.
Ainda que uma releitura seja movimento natural nas engrenagens da indústria cultural, forçar uma barra para transformar uma história ou personagem conhecido em símbolo representativo da linguagem política correspondente ao “espírito do tempo” em que se vive tem seus riscos.
Riscos criativos, financeiros, afetivos e políticos.
E quanto mais enraizados no imaginário popular, mais arriscado fica o desafio da mudança artística ou estética.
Isso sem contar com alguns fatores como faixa etária, educação escolar, influências sociais e valores familiares, razões que entusiasmam a aceitação ou rejeição às propostas de mudanças de uma história ou personagem.
Entretanto, fazer disso, razão de obsessões conspiratórias buscando combater uma alegada “dominação ideológica” ou “hegemonia cultural” pode ser tão ou mais lamentável (pra não dizer ridículo) quanto algumas reinterpretações francamente ruins na cultura pop.
Outra questão amplamente ignorada por quem analisa produtos culturais – e feita por Edward Said em “Cultura e Imperialismo” – é tão simples e poderia evitar hiperinterpretações, esse fenômeno do exagero da análise: “Todo produto cultural terá implicações teóricas?”
Qualquer análise séria e com esforço intelectual deve dialogar com “Cultura e Imperialismo”. Capa: Divulgação
E tentando demonstrar alguma funcionalidade dentro dessa exagero analítico misturado com obsessão conspiratória, os autores de “Manual da Lacração” – André e Gabriel Alba – compartilham e embalam em seu livro, algumas (des) elaboradas críticas e analises.
Os supostos autores, movidos por produtos culturais (filmes e personagens) que muitas vezes só são ideias mal ou pessimamente concebidas, falta de criatividade ou oportunistas reações mercadológicas para atender mais uma “pesquisa de mercado”, alertam para uma “contaminação” da cultura pop pelo famigerado movimento “woke”.
Vamos ao exemplo da má análise:
No capítulo dedicado a debater o movimento woke, os autores os relaciona ao movimento Black Lives Matter.
Eles escrevem: “Muitos também podem se lembrar de George Floyd, homem que morreu depois de ser imobilizado pela polícia de Ohio”. Fim da sentença e do assunto.
O compromisso com a informação esbarra aí sem citar que Floyd morreu asfixiado (asfixia mecânica) depois de já estar subjugado pela ação supressora da polícia, informação importante que muda radicalmente os critérios e abordagens para um debate justo.
Só para refletir: Seria do interesse do leitor saber quais as razões da morte de Floyd?
Os autores devem ter achado que não, para suprimir detalhes dessa natureza. Por princípio, uma discussão ou debate sério não deve ter medo dos fatos.
8 ou 80. Quando não é o exagero da análise é a falta dela.
Sumário lacrador: Muita política e pouca indústria cultura. Imagem: Divulgação
Diante disso, o que percebo são os autores performando voos de altitude baixíssima, achando que deram um passeio supersônico através do universo.
Fazendo uma conferência simples e com poucas dúvidas, consigo afirmar que o conjunto de argumentos dos irmãos Alba é um típico voo de baixa estatura, como se fossem duas entusiasmadas galinhas num terreiro com suas comadres serelepes imaginando estar inspirando Alberto Santos Dumont.
Perdem todos os lados, mas principalmente o público, pois passa a ser orientado (ou manipulado) por gente ignorante e mal intencionada metida a especialista (esses são os piores) e o terrível ciclo das bolhas ideológicas se fortalece.
A proposta clara desse livro (supostamente) escrito por André e Gabriel Alba do canal Linhagem Geek é desmascarar e expor um conluio “esquerdista” dentro da indústria cultural que transforma ícones da cultura pop em personagens panfletários diante de apelos políticos de diferentes recortes de “minorias” e do “identitarismo”.
Penso que falham miseravelmente na esmagadora maioria das tentativas. (E percebam que existem sim, críticas a serem feitas a alguns movimentos identitários)
Além de não entregarem o que define o título, praticam malabarismos teóricos com uma carrada de citações em busca desesperada por sentido, se apoiando nas bases de pensadores conservadores respeitáveis, apresentando conclusões imponderadas e análises comparativas incompetentes ou incompletas, sem produzir qualquer reforço indutivo que dê liga aos berros lacradores que eles mesmos, os autores, produzem.
Ler esse livro é realmente “esgrimar com loucos”.
Profundos pensadores: Um dos autores dedica sua vida intelectual a trocar xingamento com Nando Moura. Imagem: Internet
Os autores sequer dedicaram um capítulo – ou que fosse uma pequena passagem – para explicar o que é cultura pop, quais suas relações com a juventude.
Não buscaram estabelecer uma cronologia mínima sobre cultura pop ou apresentam um contexto histórico-cultural da indústria de entretenimento com alguns dos seus marcos importantes.
Muita política, pouca cultura e nada de análises convincentes. (E claro, tudo é culpa da famigerada Escola de Frankfurt)
Pergunta não ofende: Um livro que propõe uma crítica do audiovisual na indústria cultural ou compartilha teorias de ciências políticas em um manual para uma “terceira via” de quinta categoria??? (v.s.f.)
Enfim, dois beócios. (Ou quem mais esteja envolvido nesse publicação)
Até a página 226 (mais da metade da publicação) algumas insuficientes migalhas de referências da indústria cultural são distribuídas somente no prefácio, usando referências desarticuladas de qualquer contexto para citar filmes como Capitão América (2011), Os Dez Mandamentos (1956), O Manto Sagrado (1953), Rocky (1976), Independence Day (1996), Top Gun (1986) e Rambo: Programado Para Matar (1982).
Lembre-se que o livro se chama “Manual da Lacração: como o progressismo dominou o audiovisual e fez de Hollywood uma agência de militância”, mas não fala tanto assim de Hollywood. (E quando ou se fala, só depois de mais de 200 páginas)
Em outras palavras, os autores, além de incompetentes, repito, pois suspeito que não escreveram a primeira metade do livro, agem como típicos lacradores combatendo o que denunciam ser “lacração”.
Um caso onde a “denúncia” comete a mesma suposta ação “denunciada”.
Insisto, “denúncias” sem o mínimo preparo discursivo, preenchidas de um embaralhamento destrambelhado de teorias políticas e total desconhecimento da matéria (cultura pop).
Liga nerdola: Muita política (mal discutida) e pouco conteúdo nerd. Obsessão lacradora. Imagem: Linhagem Geek
Como afirmei, suspeito fortemente que os alegados autores (os tais irmãos Alba) não escreveram os capítulos que tratam diretamente da abordagem política, filosófica e sociológica, pelo fato de que fica claro em suas apresentações sobre o próprio livro, – fiz questão de assisti-las em quantidade – que seus comentários são carentes de ideias, de domínio de conteúdo e mediadas com explicações primárias e repetitivas à exaustão.
Não quero dizer com isso – inclusive afasto a bobagem do argumento de autoridade, desembainhando quando alguém quer desqualificar argumentos – que os “autores” em tela não possam falar (ou até entender) de política.
Contudo, um conjunto de fatores alimentam minhas suspeitas que não foram eles a escrever a maior parte do livro. A produção rasa de conteúdo abordando temas das ciências políticas em seus canais oficiais, a qualidade deficiente do vocabulário dos dois e a insuficiente profundidade teórica de seus comentários demonstra isso.
Gabriel Alba em seu Linkedin – rede social de interesse profissional – consta como “editor e finalizador de vídeo” (com todo respeito aos editores) com uma formação acadêmica na área de tecnologia.
O outro Alba (André) consta como formado em publicidade e propaganda.
Mas alerto que isso é só uma forte suspeita, pois ainda acredito na capacidade humana (não na deles!).
Ainda fortalece minhas suspeitas, saber que houve colaboração do ex-comentarista da Jovem Pan, Paulo Figueiredo – neto do presidente Figueiredo, último presidente da ditadura militar que dizia gostar mais do cheiro de cavalos do que de gente – e da plataforma Brasil Paralelo.
Paulo Figueiredo: Neto do general Figueiredo e sua ignorância cultural. Imagem: Divulgação
Voltemos ao livro para citar um caso específico que digamos, se encontra mais próximo da área de alcance (limitado) dos autores: suas análises de personagens da cultura pop.
Escolhido cerca de 60 personagens, eles geralmente começam citando seus criadores.
Exemplo: “Zorro, que significa ‘raposa’ em espanhol, é um personagem de ficção criado em 1919 pelo escritor norte-americano Johnston McCulley”. (p. 353)
E assim vai. Mas…
A Mulher-Maravilha não mereceu menção de seu autor.
Informação facilmente encontrada com uma vasta referência e bibliografia, imagino que por seu criador – William Moulton – ter tido uma relação poligâmica com Elizabeth Holloway e Olive Byrne, esse detalhe teve que ser suprimido para não chocar leitores, quando na verdade ele deveria ser reforçado para fortalecer a campanha anti-woke promovida por eles.
Aliás, para fins de informação, foi essa relação entre os três que moldou a super-heroína amazona.
Entre outras curiosidades, o laço mágico da Mulher-Maravilha pode ter sido baseado no teste de detecção de mentiras inventado por Moulton. (O laço tem o poder de fazer o laçado falar a verdade)
Mas para sepultar essa e outras dúvidas, bastaria uma debate sobre o conteúdo do livro, coisa que eles não promoveram. (Pelo menos não encontrei no vasto terreno internético)
Em seu canal do youtube, fizeram uma apresentação genérica falando sobre o conteúdo da obra, citando os nomes dos capítulos e lendo breves passagens como observei na pesquisa que fiz para esse texto.
Aliás, percebi que à época do lançamento, o evento recebeu mais gente interessada em política do que em cultura pop. E alguns poucos que demonstravam mais “afeto pop” se expressaram no máximo com uma camiseta do Homem-Aranha ou da saga Star Wars, clássicos da obviedade nerd.
“Ligações perigosas”: Duvido que eles saibam qual a referência que usei pra escrever a legenda. Imagem: Brasil Paralelo
Mesmo diante disso, duvido bastante que os irmão Alba possam manejar de maneira minimamente satisfatória em um debate, os autores usados para escorar a ladainha publicada nesse livro como Edmund Burke, Thomas Sowell, Roger Scruton, Eric Voegelin ou Viktor Frankl.
E duvido bem mais que possam fazer qualquer conexão admissível desses autores com a cultura pop. (Olavo de Carvalho e Rodrigo Constantino também foram forçadamente inseridos, né? Imaginem esses dois discutindo cultura pop?)
Caso tenha acontecido a autoria de terceiros como suspeito, também entendo que não podemos classificar o ato como falsidade ideológica – tendo em vista a ferramenta legítima dos ghostwriters – e no máximo, poderíamos considerar como desonestidade intelectual (Mas quem se importa com desonestidade se é pra lucrar, né?)
E como sempre compartilho com meus leitores, permaneço em estado de alerta desejando e aguardando livros de história, memórias, crônicas e relatos das versões da história do tempo presente de elementos como Augusto Nunes, J. R. Guzzo, Alexandre Garcia, Leda Nagle, Augusto Heleno, Braga Neto, Eduardo Pazuello, Damares Alvez, Hélio Negão, Fabrício Queiroz, mas esses livros ou escritos nunca chegam ou não dão sinais de existência.
Penso que alguns por temor de possíveis futuros confrontos históricos entre relatos e a realidade, e outros, pela mais pura incapacidade.
Misericórdia: Descobri que Augusto Nunes lançou livro. Me aguardem. Imagem: Revista Oeste
Porém, lendo esse livro dos irmãos Alba, a torcida é para que realmente não sejam escritos.
Como dizem por aí, é preciso ter cuidado com o que você deseja, meu amigo. (HD)