A perseguida tal liberdade de expressão que alguns defendem nada mais é do que uma disfarçada tentativa de manter firme e acessível os discursos de ódio, conspirações, assim como, a nociva corrente de desinformação com fins nada desinteressados. Fato ou fake?
Em um exercício de imaginação, vamos observar o Brasil e colocar essa tal liberdade irrestrita na ordem do dia. Breves exemplos:
Que tal uma Ku Klux Klan pra chamar só de nossa? Ou uma igreja satanista bem no sopé do Corcovado do Redentor? (Detalhe: Os EUA, país que influencia a discussão da liberdade de expressão mundo afora, possui um templo satanista e reconhece seu status fiscal institucional como de uma igreja).
Documentário Hail Satan?: Manifestação do Templo Satânico no Capitólio (Oklahoma). Imagem: Divulgação
E por que não uma grande convenção neonazista em todas as capitais do nordeste com direito a shows de músicos que viraram youtubers ou fazem parte de talk show, além de palestras sobre a decadência dos artistas brasileiros com participação de crítico musical que odeia fã?
Poxa… Tudo isso é só “liberdade de expressão”.
(Claro que tive (tenho) pavor só de pensar nesses exemplos!)
As intensas e variadas relações do nosso país com a religião, o caso de termos sido o último país a abolir a escravidão (e isso deixa marcas até hoje) mantendo ainda muito ativo seus métodos e inapagáveis traços, além da variedade sonora de abundantes costumes regionais, revelam a complexidade dessa tal liberdade de expressão solicitada. Vai me dizer que não?
Já podemos aí perceber que a discussão não é tão fácil como muitos querem fazer imaginar. Fato!
Daryl Davis e a KKK: Músico negro cria laços de amizade com seita suprematista nos EUA. Imagem: Divulgação
Mas vamos lá conhecer a história de um grande “defensor” da liberdade de expressão irrestrita. “Alex Jones: Uma Guerra Contra a Verdade” está em cartaz na HBO.
Tudo começa com o assassinato brutal de crianças na Escola Primária Sandy Hook no Estado de Connecticut.
Manhã de sexta-feira, por volta da 9:34h, 14 de dezembro de 2012. As primeiras a tombarem e morrerem por efeito dos disparos do atirador foi a diretora e a psicóloga da escola. O assassino matou 20 crianças e mais quatro funcionárias da escola.
De acordo com o jornal O Globo à época, ele portava nove armas e pouco tempo antes desse momento de horror tinha matado a própria mãe com um tiro de espingarda.
Logo após a tragédia, começa a interferência e o nocivo protagonismo de um apresentador e influenciador digital e seu programa político chamado InfoWars: o sr. Alex Jones.
Alex Jones: Um megafone de conspirações e mentiras. Imagem: Web
Desde o início de sua carreira, logo descobriu que o histriônico sensacionalismo sustentava satisfatórios índices de audiência.
A truculência verbal e pseudo paladina é a maior característica do seu estilo e do conteúdo compartilhado no seu canal InfoWars.
Sobre o massacre na escola Sandy Hook, durante 10 anos, o apresentador insistiu e semeou absurdas mentiras sobre essa tragédia. Passou esse tempo, continuamente e com fatos comprovados, negando que tudo tivesse acontecido, causando muitos danos aos envolvidos, vivos e mortos.
As memórias das crianças vítimas do ataque foram sistematicamente violadas pelos mais sórdidos tipos de assédio verbal, moral e psicológico, assim como seus pais foram severamente assediados e ameaçados de morte pela malta comandada por Alex Jones.
Suas leviandades e as mentiras foram só um ponto na escalada que ainda aproveitou para lucrar com expressivos ganhos financeiros durante suas transmissões sensacionalista e escandalosamente mentirosas sobre o assunto.
E é Isso o que Alex Jones chama de “liberdade de expressão”.
Tragédia: Crianças e funcionárias da escola vítimas do atirador na escola Sandy Hook. Imagem: Rede Brasil Atual
Em muitos de suas “coberturas” ou “análises” (mas com muitas ASPAS mesmo!), quando a coisa não saia exatamente como ele esperava – é difícil enganar a realidade – brigava bastante com seus operadores evitando seguir adiante.
O documentário demonstra que o caso do vazamento radioativo em Fukushima e a cobertura do seu canal InfoWars é uma prova disso.
Falseando a realidade – dando indicativos que a Califórnia tinha sido contaminada por radiação – tudo que Jones queria era iniciar seu empreendimento de venda de suplemento de iodo chamado Survival Shield.
(O suplemento de iodo pode proteger a tireoide de inchaço causado por radiação)
O operador de câmera de Jones, Josh Owens, declarou que seu chefe “transformou uma questão geopolítica em demanda para seu suplemento”, e portanto, “era óbvio que ele queria que a gente mentisse”.
Jones deve ser fã incondicional de Silvio Santos produzindo essa esperta mistura de “liberdade de expressão” com “topa tudo por dinheiro”.
Owens, cinegrafista da InfoWars: “Jones é ruim como o diabo”. Imagem: Ana Ramirez
Acompanhamos também a campanha violenta a qual Alex Jones seguiu insistindo em suas transmissões de que a tragédia de Sandy Hook era uma mentira encenada por globalistas do estado profundo (Deep State).
Mesmo diante das mais profundas evidências, Jones acusa (e compartilha) o acontecimento como uma “falsa bandeira” – False Flag: termo muito usado por conspiracionistas para indicar um falso e orquestrado evento – tomando por verdade seu delírio de que seria o governo inventando massacres para tomar as armas da população.
Tudo parece significar nada e nada parece significar qualquer coisa para esses extremistas conspiracionistas.
Diante das câmeras, Alex Jones demonstra as características mais repugnantes ao manifestar sua delirante tese de “encenação” (Hoax) patrocinada pelo governo e pelos envolvidos no atentado.
Macaqueando movimentos corporais, caras e bocas, arremedava com gestos grotescos, caretas e trejeitos depreciativos, um dos pais que acusava fazer parte de uma encenação teatral. Jones demonstra a desumanidade característica de uma boa parcela de radicais extremistas do seu tipo.
Jones em mais um de seus shows de horrores tripudiando a dor alheia em Sandy Hook. Imagem: HBO
Evacuar medo e ódio através de mentiras é a busca desse modelo de liberdade de expressão que Jones e uma parcela da sociedade defende, mas quando testemunhamos suas audiências no tribunal e confrontado veementemente com os fatos, as respostas do apresentador são sempre evasivas.
Jones sempre conta com a participação dos mais variados e lunáticos conspiracionistas (chamados por ele de “especialistas”) para validar o discurso difamatório e inverídico sobre a tragédia (ou seus interesses).
Wolfgang Halbig, um senhor de idade avançada, impulsionado por seus próprios distúrbios intelectuais e pelos delírios políticos de Jones, corrobora a versão de que não houve nem tiroteio e nem mortes, numa clara demonstração rodrigueana de que até os canalhas envelhecem.
Uma lição explícita no documentário e certificada por uma das mães vítimas da infâmia de Jones, diz respeito sobre a atitude dos negacionistas: “Não adianta discutir com fanáticos”.
Fatos, provas , testemunhos, evidências, documentos ou qualquer sinal de mínimo bom senso não faz o menor sentido diante da cegueira ideológica, deficiência cognitiva (sempre aguda) ou imbecilidade compartilhada (ou coletiva). As convicções (sempre) são tortas e turvas.
Wolfgang Halbig (esquerda): Enviados por Jones para assediar os pais das vítimas em Sandy Hook. Imagem: HBO
Kelley Watt, uma mulher de meia idade (nossa, que lamentável envelhecer assim) escreveu um livro chamado “Nobody Died at Sandy Hook” (ninguém morreu em Sandy Hook).
Não consigo imaginar a extensão de tanta degradação mental representada por essa lamentável senhora.
E a intimidação é uma das armas usadas por esses radicais. Jones compartilhava informações pessoais dos envolvidos para que os ataques organizados continuassem minando o bem-estar e o que restava de tranquilidade para os pais das crianças de Sandy Hook. (Tem gente que imita essa tática aqui no Brasil, concorda sr. Allan dos Santos?)
Kelley Watt: Conspiracionista radical colaboradora de Jones. Imagem: HBO
Por fim, quero dizer que compreendo que nossa democracia – como seria qualquer outra (re) nascente – tem defeitos, contradições e inconsistências.
Porém, não será dando espaço para a ignorância facínora, o preconceito criminoso e a desatenta credulidade dos beócios e nem convidando de forma pacífica e receptiva para esse debate indivíduos como Alex Jones, que conseguiremos colocar sujeitos de sua espécie onde nossos marcos civilizatórios devem colocá-los.
Brasil: Patriotas e sua versão de “liberdade de expressão”. Arte: @ultralafa03
Escolher livremente o que se vê e ouve certamente é um direito que todos temos, não tenho dúvidas. Compartilhar ideias e teses livremente também.
Mas produzir intencionalmente graves mentiras e teorias da conspiração para causar danos a terceiros, espalhar o ódio e lucrar com o circo midiático e social pegando fogo, difere disso.
Só uma plateia imbecilizada (pela comparação, peço perdão aos imbecis!) e radicalmente fanatizada chama isso de “liberdade de expressão”. (HD)
Excelentes considerações sobre a mentira da liberdade de expressão irrestrita.