Passei pelo menos umas três vezes por esse novo título no catálogo da Netflix até pensar: “Ando meio distante de histórias de amor, mesmo das que possam ser parecidas com a desse casal”. Digo isso porque me passava a impressão de um casal fora do modelo tradicional (o felizes para sempre). “Vou assistir e compartilhar”, pensei.
“Bebê Rena” (Baby Reindeer) pode ser tudo, menos aquilo que eu pensava. Mas foi uma boa (e meio ultrajante) surpresa.
Richard Gadd (Donny) e Jessica Gunning (Martha) irão formar um par (mesmo que forçosamente) que se conhecem num pub. Danny atendente, Martha cliente.
Ligações perigosas: E tudo começa com uma xícara de chá em um pub. Imagem: Divulgação
Ambos possuem, digamos, um discreto charme, ele é também um aspirante a comediante, e ela, sabe-se lá o que faz da vida, ainda que alegue ser advogada.
Daí em diante as coisas foram se transformando pra mim de forma que quase desisti de escrever esse texto, pois como disse, achava que iria assistir outra história e queria compartilhar essa “aventura de amor” por mim imaginada.
Quis desistir, mas cá estou, por achar que foi uma experiência ao mesmo tempo dolorosa e problemática, estimulante e cômica. (Como na verdade é toda história de amor!)
Como apontei, logo fica claro que a jovem senhora Martha possui problemas pessoais. Se ele também os tem, a série vai orquestrando e explicando os motivos das coisas irem continuamente na direção da desordem, nos carregando para cantos mais íntimos de Donny.
Me suporta que eu gosto: Temos carência de um lado, e do outro, carência de carência. Imagem: Divulgação
Personagens, histórias, conflitos, lamentos e distúrbios, nada disso é tratado de forma maniqueísta como poderíamos imaginar, pois penetramos em uma zona mais cinzenta onde não há muito discernimento sobre quem é vítima, quem é violador, quem é inocente ou culpado. E vamos descobrindo e nos incomodando bastante.
São muitas outras nuances presentes nas entrelinhas e também questionadas, como por exemplo, a aparência física – Martha é uma mulher gorda e desesperada por atenção, assim como Donny possui uma baixa estima que o faz aceitar situações humilhantes – incentivo a comportamento tóxicos e mais uma pá de ações e sentimentos embaraçados com carências psicológicas profundas.
Apesar de uma ou outra alteração na história, por incrível que pareça (e eu acredito!), a história é baseada em fatos reais (prefiro usar o pleonasmo no sentido da urgência). E ao assistir, você se assusta ao conhecer esse triste, aloprado e atraente conto.
Martha (Jessica Gunning) possui muitos traumas e nenhuma estima. Carência a mil. Imagem: Divulgação
Assédio, violência sexual, sonhos, traumas, mentiras, segredos e manipulações, e ainda que com essa lista dramática, com talento e habilidade, os protagonistas conseguem nos arrancar da calamidade para nos proporcionar risos nervosos.
Posso dizer que conheci algumas experiências parecidas, numa intensidade bem menor, mas sei o quanto pode ser perigoso e prejudicial alimentar e ser alimentado por relações desse tipo.
O personagem Donny é baseado em experiências reais da vida do próprio ator Richard Gadd. Ele relatou que a série foi um confronto com suas emoções negativas (e pelo que se vê, não são poucas). Emoções negativas que tiveram suas origens em condutas arriscadas.
Gadd e Gunning com seus personagens complexos dão um show de interpretação. Imagem: Divulgação
Tenho convicção que só os britânicos, munidos de seu característico humor, poderiam produzir algo como Bebê Rena. No melhor sentido, o programa destoa bastante da maioria do conteúdo no catálogo da Netflix.
Ao fim, em maior ou menor medida, me parece que a lição deixada é que todos temos algum traço das urgentes carências de Donny, o comediante que quase transforma seu drama em tragédia, e de alguma forma, também possuímos o desespero afetivo de Martha.
E ao assistir, todos irão rir de como podemos ser perigosamente ingênuos ou desesperadamente carentes. (HD)