Hoje vou falar da interessante minissérie de ação e suspense policial chamada “Irracional” que estreou recentemente no catálogo Netflix. Antes entretanto, algumas observações.
Na maioria das vezes, não dá pra chamar de requintadas ou refinadas as produções originais Netflix – filmes ou séries. Falham bastante na produção de modo geral, mas o pecado maior sempre é o argumento (roteiro), detalhes da trama e diálogos.
Ao final da experiência audiovisual fica aquele gostinho de que não se esforçaram o suficiente para entregar um produto digno da admiração de quem gosta de cinema (ou filmes), seja de que gênero for.
Algo sempre perde a mão ou descarrilha e parece que o esforço vai até a vontade de fazer um “filme para TV”, como chamam aquelas produções exclusivas para as telinhas e a presença excessiva e generalizada de desânimo artístico por todo os lados.
Claro que não posso deixar de reconhecer que séries com o selo Netflix como Ozark (2017), Stranger Things (2016) e Black Mirror (2011) tem suas qualidades.
Para os saudosos de Breaking Bad, a trama em Ozark pode ser uma boa alternativa. Cartaz: Divulgação
Porém, Ozark e Stranger Things com oscilações nada admiráveis nas suas melhores características em suas temporadas mais recentes e Black Mirror com sua qualidade um tanto afetada depois que passou a ser exibida pela gigante do streaming.
Enfim, não é jogo empatado – produções originais versus espectadores – e o público (mais exigente) sempre sai perdendo. (Os chorões da Netflix podem falar de Orange Is The New Black e House of Cards)
Mas observo, esse problema não é só da indústria criativa de produção em massa da Netflix.
Amazon Prime, Apple TV (mesmo com um grau de qualidade mais elevado), Paramount Plus, Starz, pra falar de algumas, também operam mais ou menos no mesmo gradiente que o grande N vermelho. A HBO segue sendo mais eficaz em suas produções, principalmente documentários e séries.
Voltando à Netflix, posso citar o caso da produção original “Passei Por Aqui” – associada com a Film 4, Regency Enterprise e a envolvente XYZ Films – um filme de suspense com um argumento instigante, mas que em seu curso parece entrar em um estado descuidado e enfraquece a experiência de assisti-lo.
Original Netflix: Um bom filme que poderia ser ótimo. Preguiça artística? Cartaz: Divulgação
Posso enumerar várias qualidade de “Passei Por Aqui”, como por exemplo, os bons atores, os empuxes dramáticos, a dilatação sensorial produzida pelo suspense, mas pequenas falhas de ritmo e curvas de desenvolvimento impediram de completar o filme com aquela sensação de que valeu a exibição. (Claro que isso também tem o componente do gosto pessoal e a carga de experiências/conhecimentos pessoais)
(Eita, tantas voltas e nem comecei a falar de “Irracional”, né?)
Vamos lá então.
Primeiro quero dizer que “Irracional” consegue (escrevi “CONSEGUE”, porque comecei esse texto antes do quinto episódio dos oito e aqui mudo para o condicional “quase consegue”) evitar a síndrome do fenômeno “filme para TV”.
“Irracional” conta a história de muitos dias difíceis, complexos e apavorantes na vida de um jornalista e escritor (em um excelente trabalho do ator Colman Domingo) que decide ir pra uma calma e isolada choupana nos arredores da Filadélfia (EUA) para começar seu novo livro e onde se envolverá em sérios problemas.
O ator Colman Domingo: Personagem é jogado numa espiral de assassinatos e conspirações. Imagem: Divulgação
Os showrunners e roteiristas da minissérie capricharam e colheram muito do que está na “ordem do dia” mundial: supremacistas raciais, BLM (Black Lives Matter), manipulação eleitoral, direitos civis, extremismo político, polarização, controle de narrativas, e claro, muita conspiração.
E dá liga! (E como não, se a violência política, o ódio entre os diferentes e o fanatismo estão espalhados?)
“O pilar da nossa doutrina é que nos reunimos em unidade pra aprender a propagar a verdade pura fora das falsidades disseminadas pelos marionetistas do estado profundo (deep state)”. Essa sentença poderia ou não sair da boca de qualquer extremista?
E a história é agrupada de forma coesa, apresentando os acontecimentos e suas escaladas de forma bastante coerente e plausível. Muitos momentos de tensão e jorros de adrenalina.
Mas aí chegaram os episódios 5 e 6, e que deram uma boa derrapada no desenvolvimento da trama.
Elenco: Núcleo de protagonistas eleva o nível em “Irracional”. Imagem: Divulgação
Até o finalzinho do quinto episódio tudo correu bem, mas seu desfecho foi levemente forçado fazendo com que se deslocasse o ânimo do espectador no mal sentido.
A boa notícia é que logo em seguida, nos dois últimos episódios (7 e 8), o vagão consegue voltar aos trilhos (inclusive quase tarde demais) devolvendo à narrativa um certo nível de recomposição pra sua estrutura, devolvendo a ultra intranquilidade da história.
Observo também, e de forma admirável, o núcleo de atores e atrizes principais formado por atores negros de uma nova geração que fortalece um movimento – pouco percebido por analistas e críticos – de títulos compostos por artistas negros tendo a oportunidade de mostrar talento e relevância apresentado um zênite artístico desafiador.
Luta pela liberdade: Uma conspiração cabe num pendrive e pode ser perigosa. Imagem: Divulgação
Diante de tudo isso, posso afirmar que “Irracional” é uma minissérie que confronta muito bem o padrão difamatório “filme para TV” comum às produções originais Netflix com seus formidáveis protagonistas, trama instigante, mistérios envolventes e temas contemporâneos.
Ps: O filme citado no texto, “Passei Por Aqui”, sofre um tanto da ameaça da praga do “filme para TV” – mas é um bom filme de suspense e que pode surpreender o espectador por algumas escolhas narrativas incomuns que batizei de “disposição Game of Thrones”, ou seja, ninguém é poupado. (HD)