Essa discussão se inicia a partir de um texto recém-publicado no portal de jornalismo do site Antagonista (revista Crusoé) e assinado por Josias Teófilo, (diz-se) cineasta e diretor do documentário Jardim das Aflições (2017) inspirado em um dos livros de Olavo de Carvalho.
No texto “O Fetiche das Referências“, o autor faz um recorte do que pode ser sua definição e do que representam as “referências cinematográficas” tomando como base o filme “A Substância”.
Logo de início, o subtítulo da manchete já joga sal no mar: “Um filme que dialoga com outras obras pode ser ruim, como é o caso de ‘A Substância’”.
O colega escrevinhador (informe-se que colega bem distante) esqueceu de mencionar – ou pelo menos fazer melhor construção frasal – que no meio de tanta subjetividade, QUALQUER filme pode ser ruim.
A Substância: Referências e rimas visuais que incomodam mais que o horror corporal do filme. Cartar: Divulgação
O articulista da Crusoé toma como base uma série de imagens – em sua maioria compartilhadas por perfis que falam e analisam cinema – onde podemos ver claras influencias imagéticas de Stanley Kubrick, Alfred Hitchcock e Brian Da Palma em A Substância.
Ao longo do seu texto diz, “a tendência autorreferente do cinema tem se tornado um vício”, para sugerir a fragilidade estética das referências em um filme como A Substância, sem dar qualquer exemplo para que junto com ele, pudéssemos construir as resistências de um argumento coerente.
“Vício” é excesso, – termo usado em sua crítica – e no excesso encontramos variedades, ou não? Por que não fez quaisquer referências a um único exemplo? (Aqui, já ri baixinho. Eu já podia me desobrigar a continuar!)
Psicose em A Substância: Alfred Hitchcock explícito. Imagem: Colagem pessoal
Numa espécie de involuntária autocontradição cognitiva (imagino eu), Josias Teófilo acerta em apontar o diretor Quentin Tarantino como importante praticante e influenciador da técnica da referência.
Tarantino é por certo o mais óbvio, mas ele poderia ter citado outros como Wes Anderson e (o controverso) Lars von Trier.
(Vejam do dinamarquês, o radical A Casa que Jack Construiu (2018) e observe até onde vão as referências de um cineasta que “inventou” o movimento estético Dogma 95)
Podia ele também ter observado que Tarantino assim se constitui porque ele é um devorador voraz de filmes. Quem leu seu livro “Especulações Cinematográficas” sabe disso (Além de aprender muito). Ele é uma enciclopédia artística.
Lar von Trier: O cartaz do desafiador A Casa Que Jack Construiu já cita Virgílio (A Divina Comédia). Cartaz: Divulgação
Vamos lá.
Provavelmente, uma das cenas mais referenciadas no cinema seja o momento final em “Rastros de Ódio” (The Searchers, 1956) quando o personagem problemático, solitário e dilacerado de John Wayne dá as costas para o espectador e segue sem destino, enquadrado não só pela câmera, mas pelo caixilho da porta da casa de sua família.
Uma sensível composição visual (um quadro dentro do quadro, técnica repetida algumas vezes no próprio filme) que justifica as homenagens espalhadas em várias releituras de diversos outros filmes. (Em Kill Bill, 2003 e Predador – A Caçada, 2022, entre outros)
Referência visual: O filme “Rastros de Ódio” referenciado em “Kill Bill”. Imagem: Cultural Design
Posso até expandir um pouco esse assunto, revelando como funciona esse mecanismo visual (a tal referência cinematográfica), já que essa mesma cena final traz um outro importante detalhe referencial: o simbólico cruzar de braços feito por Wayne para homenagear seu ídolo de infância, o ator de faroestes Harry Carey.
O seu maneirismo gestual imitando seu ídolo foi um movimento completamente improvisado durante a gravação da cena com a intenção de fazer uma homenagem ao referenciá-lo.
John Wayne referencia seu ídolo (Harry Carey) na cena final em “Rastros de Ódio”. Imagem: Colagem pessoal
E somente o interesse e entusiasmo pelo cinema – que é o meu caso – pode permitir ter essa noção extra, mas provavelmente, também posso supor que não altera a experiência cinematográfica de quem não conhece esse detalhe ou não alcança esse outro significado.
Porém, – ainda no meu caso – ao descobrir esse referencial, meu interesse em conhecer algum filme do ídolo de Wayne foi despertado.
E Provavelmente esse seja o grande benefício de uma referência cinematográfica: uma maneira de ampliar a cinefilia.
O cinema e seus truques operam como guia das emoções, desejos e sentimentos. E um cineasta pode ter diferentes motivações para dispor desse truque: uma homenagem, citação, piada interna, um verso imagético e sabe-se lá mais, sobre o que motiva essa escolha. Até um McGuffin pode ser uma referência. (Procure saber o que é)
Desde cenas emblemáticas até uma roupa ou diálogo, um livro ou poster cenográfico, o cinema adora usar referências. Momentos cinematográficos marcantes são logo facilmente reconhecidos e podem entregar, além de uma sensação de nostalgia ou de comunicação estética, uma pequena abertura para surpreendentes descobertas.
Kill Bill: Tarantino faz referência ao figurino de Bruce Lee em Operação Dragão. Imagem: Cultural Design
Algumas das coisa importantes relacionadas às referências fílmicas são a poesia visual e a composição cenográfica. Isso faz parte do que chamo de aprofundamento do senso estético. (Sim, é uma elevação de nível, um chamado para o próximo desafio, pois afinal, onde e como podem ficar os filmes antigos?)
E sendo sincero, não saberia dizer exatamente como começar uma cinefilia ou gosto por conhecer filmes. Se por década, diretor, movimentos estéticos, gênero, etc. (Mas posso dizer que as referências fazem parte dessa caminhada)
As famosas e famigeradas listas podem ser um bom começo para quem deseja conhecer e se aproximar do mundo cinematográfico.
(Duas coisas: Não esqueça de privilegiar listas de críticos renomados, revistas especializadas, cineastas, e as minhas, claro!)
E mistures essas listas. O lance é passear por diversas épocas, diferentes realizadores e os mais variados estilos, buscando esse citado sentido estético, assim como, a mais pura e ordinária diversão.
Lista de filmes: “1001 Filmes” é um bom começo para encarar listas. Imagem: Arquivo
Por outro lado, acho lamentável (pra ser educado!) algumas das concepções que imperam no campo do pensamento conservador brasileiro em relação às artes cinematográficas e expressadas por meio de alguns de seus representantes.
Até aí, – ter representantes – considero episódio legítimo, só poderiam apresentar mediadores com melhor qualidade e capacidade. E nem falo de academicismos ou reentrâncias comprometidas com a seriedade ou aguda excelência, mas criaturas minimamente preparadas para falar sobre o que se propõe.
Alguns “críticos” ou “analistas” da sétima arte dessa direita histriônica e chucra só rebaixam o exercício de quem gosta de sugerir ou compartilhar experiências cinematográficas.
Bastaria que entendessem bem (muito) melhor sobre o que dissertam. O fato perceptível de uma total ausência de uma robusta gramática cinéfila já os incapacitam.
Falar de cinema sem ver filmes ou conhecer filmes é ler Grandes Sertões do fim para o começo. Até pode, mas não se leve a sério, por obséquio.
Cito alguns. Jurandir Gouveia (canal de Storytelling e crítica de filmes) analisa montado em suas virtudes autocentradas, extremamente conservadoras (no mau sentido) e o contraditório nunca tem espaço.
Os irmãos Alba são dois analfabetos cinematográficos que acham que a indústria do cinema é uma conspiração progressista que quer dominar o mundo (Sem paciência pra isso, né?).
Sobre o Gouveia dá para reconhecer que ele é estudioso (e só), mas sem muito talento para criatividade – fato preocupante para quem se anuncia como “criador de histórias”.
Os irmãos Alba possuem como única qualidade reconhecer a cor dos uniformes dos heróis que habitam os únicos universos que eles parecem, repito, parecem conhecer: Marvel, DC e do curso de “filosofia” de Olavo de Carvalho (Inclusive esse senhor, quando (tossia e) falava de cinema sempre era um desastre. Não conseguia passar da década de 1950)
Irmãos Alba: A excrescência de qualquer conversa sobre cinema. Imagem: Brasil Para Lerdos
Mas um dos campeões indiscutíveis sobre como falar bobagem (mais uma vez sou educado!) sobre cinema faz parte do canal Revista Valete.
O anfitrião das entrevistas e discussões sobre cinema chama-se Lucas Mehero (advogado do MBL) e no formato convencional de um podcast, ele e seu convidado vão falando sobre a sétima arte. (Aff)
Tive o desconforto de assistir um dos seus últimos vídeos com o tema “Diretor expõe os PODRES do CINEMA NACIONAL!” – um vergonhoso bate papo de nada sobre coisa alguma – onde NÃO se falou de cinema nacional e a única coisa “podre” ali era o conteúdo vazio da conversa que ocorria.
(Para não ser injusto, quando eles falaram de cinema nacional, citaram o filme do… do… Beeeelo! Isso mesmo. O cantor de pagode e um filme chamado “Caindo na Real.)
Logo no início do bate papo, engataram (ou tentaram, né?) uma conversa sobre montagem cinematográfica – o convidado, um “diretor” de cinema que conseguia ser mais medíocre que o anfitrião – e aí pensei comigo, “Agora vai!”…
Começaram a falar da montagem cinematográfica e o sabidão do anfitrião, eloquente amante da sétima arte e espectador convulsivo de cinema pôs em debate a montagem de…
A “Liga da Justiça” do Zack Snyder uauauauauaueueueue
Gente, não quero parecer intransigente, mas achava que eles iam, de leve, meter um “Operação França” e sua montagem das perseguições automobilísticas (seria até fácil dar esse exemplo) ou até mesmo algum Kurosawa (a clássica montagem em “Rashomon”), o impressionante “Touro Indomável” ou até o recente thriller “Amnésia”. Os caras meteram a Liga da Justiça, véio!!!!! (Vamo combinar que num dá, né?)
Nerdolas: “Vamos falar de montagem sem conhecer o que significa?”. Imagem: Operação França (filme)
Há muitas, bastante, numerosas pessoas que podem dizer nunca ter lido um livro ou assistido uma peça, mas uma proporção inversamente, incontestavelmente menor, dirá que nunca viu um filme.
Tenho certeza de que esses caras da tal Revista Valete fazem parte dessa proporção menor.
E posso até estar errado nessa estatística, mas sei que eles lêem o livro, escutam a música, vêem o filme, mas não entendem nada. Exatamente como faz essa direita que se disfarça de apreciador de cultura vestindo camiseta do Oasis e do Franz Ferdinand.
(Tenho que fazer justiça aqui e dizer que um dos beócios no Revista Valete citou um filme franco-espanhol “As Bestas” me provando que até as bestas também falam de si. Aaah, e ele falou o nome do filme errado, no singular)
Pra finalizar, gostaria de dizer que acima de tudo, uma referência cinematográfica – visual ou narrativa – que de algum modo conduz posteriormente à outras obras referenciadas – é só uma pequena armadilha criativa que captura o mais preparado, e nunca o desatento.
Atento que tento ser, capturei esse dias uma rima visual entre cinema e quadrinhos.
O uso da mesma técnica (o Super Close) serviu para destacar – nas cenas – o desprezo de um empresário ganancioso com seu interlocutor. Dois momentos similares e que expressaram a mesma coisa, tanto no filme como na HQ.
Super Close em “A Substância” e uma HQ sobre o empresário dos Beatles. Imagem: Colagem pessoal
E como eu disse, para o desatento isso nem fará diferença na experiência cinematográfica. No seu entendimento, ele só emergirá dizendo se o filme foi bom ou ruim. E isso basta, ponto.
Completo observando que filmes que contenham referências por qualquer motivo, e ainda que despercebidas, também podem preencher o desejo de diversão, admiração, entusiasmo e satisfação de qualquer pessoa disposta a isso.
E nem essa disposição de se divertir, a direita chucra, boçal e palerma consegue. (HD)